Havia sentimentos ambíguos em relação a este livro: A Casa das Sete Mulheres e Um Farol no Pampa foram histórias lentas e tristes, em que a guerra separava amores e enclausurava tantos vivos quanto mortos, talvez por isso, em muitos momentos dessas leituras eu me pegava melancólica.
Resolvi encarar a leitura de Travessia por razões que, em resumo, se relacionam ao TOC que não me deixa ficar com trilogias (séries em geral) inacabadas.
Travessia, o livro que motivou a reedição dos livros anteriores, é um livro dedicado à história de amor vivida por Anita e Giuseppe Garibaldi.
Tânger (cidade do norte de Marrocos), fevereiro de mil oitocentos e cinquenta, o italiano Giuseppe Garibaldi está no exílio, longe da Itália, que o expulsou, mais uma vez, e colocou sua cabeça a prêmio; afastado de seus filhos, que ficaram com sua mãe em Nizza; e afastado de Anita, abandonada em uma às margens do mar Adriático poucas horas após sua morte. Agora com quarenta e quatro anos, a dores do coração e da alma se misturam às do corpo, ele já não é o homem vigosoro que comandou a travessia dos barcos pelos pampas gaúchos durante a Revolução Farroupilha.
As lembranças o afogam, e, justamente para desafogar-se de suas lembranças e dores, ele se senta na mesa em seu quarto de pensão e joga as palavras em folhas e mais folhas de papel.
(Olha que coisa: depois de separados por terra, por mar e pelo tempo, Garibaldi e Manoela finalmente se unem em uma atividade comum...)
E assim, voltamos voltamos ao pampa, nos primeiros dias de julho de mil oitocentos e trinta e nove, quarto ano da Revolução Farroupilha, Giuseppe terminara o romance mal começado entre ele e Manuela para dedicar-se à construção dos barcos que fariam sua primeira viagem por terra em direção ao mar, para que os Farroupilhas pudessem conquistar um porto para a República Juliana.
É de um desses barcos, que ele, em uma tarde de ócio, vê Ana Maria de Jesus, a sua Anita, a beira da praia, próxima à casa de seu tio, onde morava enquanto seu marido lutava na guerra ao lado dos imperialistas.
Ao escolhe-la, Giuseppe deu a Anita voz na história do mundo e em sua história, e, como a voz que é, Anita também se faz presente na narração, contando-nos sobre as noites e as lutas ao lado de seu José, sobre as angustias e os ciúmes que tanto a perseguiram durante sua vida ao lado do herói de tantos povos, até mesmo sobre sua morte, anos depois, na Itália.
Anita e Giuseppe Garibaldi foram humanos amados pelos deuses, e até mesmo a maior delas toma para si a narração de vez em quando.
Travessia manteve a ambiguidade de seus antecessores: ele é melancólico, e de alegrias passageiras, mas ele difere dos outros em outro aspecto: mesmo nos momentos em que a espera de Anita sobrepôs-se à sua própria personalidade (momentos em que ela ficou retida em casa e seu marido foi para a guerra), tem-se a sensação do movimento contínuo, seja pelas pelejas em que Garibaldi se envolvia, ou pelo lento crescer de seu ventre e de seus filhos.
A espera sufocante de A Casa das Sete Mulheres (de Manuela mais exatamente, que, por ser narradora, vicia-nos com sua espera eterna e infrutífera) é transformada em uma espera que gera resultados em múltiplas frentes, com Giuseppe libertando pessoas, cidades e países e Anita gestando e lutando suas próprias pelejas.
Travessia foi uma redenção de Leticia Wierchowski. Sua obra jamais foi ruim (isso jamais!), mas, de uma história de esperas e perdas, essa história de amor e de lutas se transformou em uma preciosidade única da qual não conseguirei me desvencilhar tão cedo. <3