30 de jan. de 2018

O Vermelho e o Negro - Stendhal


Recebi este livro em Julho de dois mil e dezesseis pela TAG - Experiências Literárias. Não queria ter demorado tanto para lê-lo, mas sempre o deixava para depois, especialmente quando tinham os prazos das parcerias para cumprir.

Acabou que ele se tornou o primeiro desafio do ano no quesito resenha.

Julien Sorel é o filho mais moço (e mais odiado) de um carpinteiro rico de uma cidade fictícia da França que recebeu sua educação graças a um cirurgião-mor que se afeiçoara ao rapaz. Tal como seu maior idolo, Napoleão Bonaparte, Julien é ambicioso e possui sonhos de grandeza.

De sua vontade, Julien subiria socialmente seguindo carreira militar, mas, reconhecendo as mudanças que aconteciam na França pós-napoleônica, sua mente voltou-se para outro caminho rumo a aristocracia: a carreira eclesiástica.

(É a partir dessa troca de caminho que se constrói o título do livro. O vermelho da farda do exército substituído pelo negro da batina).

Revestindo suas características naturais como outras que lhe permitam sobreviver na sociedade opressora e preconceituosa que é a França do início do século XIX, Julien mostra toda a sagacidade narrativa que fez de Stendhal um dos maiores nomes da literatura francesa e mundial.

Considerando-se os livros de sua época (O Vermelho e o Negro foi publicado pela primeira vez em 1830), esta obra se destacou por preocupar-se menos com ambientações externas e mais com sentimentos e pensamentos de seus personagens (e não apenas do protagonista, mas de todos os que possuem alguma importância na trama).

Apesar da péssima fama que os clássicos em geral possuem (quase sempre relacionados à linguagem em que são escritos), minha maior dificuldade neste livro foi conseguir entender o contexto histórico em que o personagem se inseria, e dizer que se trata da época pós-napoleônica não foi exatamente de muita ajuda. (Talvez dizer que se trata de uma época em que os monarcas absolutistas (recém reempossados depois do fenômeno Napoleão Bonaparte) entraram, mais uma vez, em conflito com a classe burguesa seja mais esclarecedor.)

É bastante complicado ler um livro desse tipo sem ter acesso a uma fonte melhor de pesquisa para poder entendê-la melhor. Tenho certeza de esta resenha seria muito mais rica do que trago agora.

26 de jan. de 2018

Perdida - Carina Rissi


Sabem aqueles livros que todo mundo leu (menos você) e que todo mundo fala bem (mas você sempre desconfia que talvez não seja tudo isso)?

Perdida foi um desses livros para mim. Acho que desde que me entendo como frequentadora assídua do Clube do Livro Espírito Santo, ouço falar bem desse livro. Por fim, a curiosidade (e uma excelente promoção em algum site) me fizeram comprá-lo e lê-lo.

Sofia Afonso é uma mulher do século XXI. Formada em Administração, empregada na empresa em que estagiou, ela mora sozinha e se vira para sobreviver a todos os dramas da modernidade (desde o rodízio de carros até a dependência quase intrínseca do aparelho celular).

Um uma noite de farra com a amiga, que lhe informara que estava pronta juntar as escovas de dentes com as do namorado, resultou em um dos piores desastres que uma pessoa poderia viver: o celular caiu numa privada suja de um bar paulistano.

Nada de pânico, só comprar um novo, certo? Seria, se a vendedora que a atendeu não fosse uma mulher pra lá de estranha que lhe oferece, a um preço irrisório, um celular de alta tecnologia que fará tudo o que ela precisa para encontrar a felicidade.

Tipo levá-la de volta ao século XIX.

Pois é, foi tupo isso: um tropeço em uma pedra da praça, e ela cai de bunda em uma rua de terra batida é resgatada por um cara à cavalo vestindo terno, gravata e colete que insiste em chamá-la de senhorita e bem pudico em relação às vestimentas dela.

Comparados aos boatos, não achei o livro tãããão engraçado assim. Os momentos "vergonha alheia" de Sofia (tanto no século XXI quanto no XIX) foram engraçados, mas não a ponto de fazer o livro ser a comédia que me foi pintada. Para quem é adepto a uma boa salada, talvez Perdida faça a pessoa reconsiderar o consumo de alface, e qualquer pessoa com um apego mínimo ao banheiro de casa vai entender o desespero de Sofia em relação à casinha.

Mas em alguns pontos, preciso concordar com todos os que falaram bem de Perdida: a escrita de Carina Rissi é muito boa e é muito fácil se deixar envolver por ela. Apesar de algumas coisas ficarem meio perdidas na história, ela soube amarrar as pontas muito bem. E, é claro, há o senhor Clarke, que sempre será um ponto (muito) positivo nesse livro.

24 de jan. de 2018

Sonata em Auschwitz - Luize Valente



Histórias da Segunda Guerra Mundial são sempre difíceis. Não importa qual seja o ponto de vista narrativo, sempre nos envolvemos (às vezes a tal ponto de não conseguir continuar com a leitura). 

Conheci Luize Valente com Uma Praça em Antuérpia, e, por isso, quase surtei quando Sonata em Auschwitz chegou em minha casa. Apesar de saber que seria uma história cheia de sofrimentos, também sabia que teria a narração consoladora de Luize para me fazer aguentar até o final.

Amália é filha de um alemão que mora em Portugual desde os cinco anos. Passou sua passou parte de sua infância naquele país, e parte de sua adolescência em Moçambique, onde os pais foram exilados por se oporem ao regime de Salazar.

Em toda a sua vida, pouco (quase nada, na verdade) sabia da origem alemã do pai. Até então, ele nada falava, nem mesmo uma única palavra em alemão era proferida nas casas em que Amália e o irmão cresceram.

Isso muda quando, ao tirar o telefone do gancho para ligar para seu ginecologista ela escuta seu pai conversando, em alemão fluente, com a avó paterna que ela vira uma vez na vida, há muito tempo, e por um momento tão breve que ela mão se lembra de seu rosto.

Na conversa, ela escutou sobre Frida, a bisavó de quase cem anos que queria conversar com Hermann, seu pai, sobre o filho, avô paterno de Amália, oficial alemão que lutou na guerra pelo Reich.

É um choque de repente descobrir-se descendente de um nazista, uma ruptura em tudo o que ela conhecia até o momento sobre a família que a criou defendendo ferrenhamente o valor dos direitos humanos.

Assim mesmo, ela parte para Berlim e, em segredo, vai procurar a bisavó. A velha senhora desfia a história de sua família, do marido seguidor ferrenho de Hitler que se matou ao admitir que o sonho do império alemão estava extinto e de Friedrich, seu filho mais moço, o sensível e genial piloto que viu sua liberdade cair por terra após um acidente aéreo. 

E, especialmente, Frida contou a Amália sobre a noite em que ele chegou em casa de madrugada carregando uma menininha recém nascida numa cesta. Haya, que nascera menos de dois dias antes no campo de concentração de Auschwitz.

Apesar de ter sido dado como morto, Frida tinha esperanças que Friedrich ainda estivesse vivo, no Brasil, após descobrir, nos pertences de seu pai (com quem tinha cortado relações antes da guerra), um cartão postal com a foto de Haya adolescente junto com sua mãe e, ao lado, uma partitura de piano com uma composição de Friedrich para a bebezinha resgatada.

A história foi contada, mas as perguntas ficaram. Perguntas sobre Friedrich, sobre Haya, sobre as ações do pai... E é com elas que ela vem para o Brasil. É com elas que ela se encontra com Haya e Adele. E é assim que Adele rompe o silêncio dos anos e, pela primeira vez, conta para a filha sobre o local de seu nascimento, e sobre o soldado alemão que salvou sua filha da morte em Auschwitz.

Não é uma história fácil de se ler. A todo momento, um bolo se forma na garganta quando se presencia, mesmo que somente pela leitura, o horror e a desumanidade sendo distribuídos tão gratuitamente. Fiquei pensando também como seria ver uma pessoa boa tendo que desfigurar seu próprio caráter para não sofrer as consequências por ajudar os alvos de um ódio infundado. Como seria saber que seus avós e/ou pais fizeram parte, mesmo que a contra gosto, dessa carnificina. Só pensar é arrasador.

É aqui que me explico ao definir a narração de Luize Valente como "consoladora". Suave e humana, ela parece sabe como afagar os corações partidos e espremidos depois (e até antes) das partes mais sofríveis da narração. Os sofrimentos vividos se alternam entre momentos ternos que mostram a força de pessoas que foram dizimadas por não caberem em um "ideal" estúpido de um homem louco.

A leitura de Sonata em Auschwitz é muito mais que recomendada. <3

22 de jan. de 2018

Indomável - S. C. Stephens


Durante toda a série Rock Star (incluindo aí o livro extra do Kellan) Griffin Hancok sempre conseguia ficar como o babaca da turma que, às vezes (tipo, às vezes mesmo), conseguia subir seu status para "legalzinho".

Quando a banda estourou e se tornou o maior fenômeno musical do mundo, Griffin alcançou muitas das vantagens que queria: uma bela e grande casa, um carro veloz e a esposa maravilhosa e que lhe deu duas filhas lindas.

O que a fama não lhe trouxe foi um refletor focado única e exclusivamente nele. Era justamente isso o que ele mais queria.

Mesmo com os constantes conselhos de sua esposa para ser paciente, e depois de vários pequenos conflitos não resolvidos por orgulho e/ou por falta de esforço, Griffin surpreende a todos com uma decisão repentina e radical que muda a todos ao redor dele.

Quando caos se instaura, ele vê tudo que mais lhe foi caro na vida escorrer por seus dedos, incluindo o relacionamento com a pessoa que ele mais ama no mundo.

Indomável possui dois momentos bem determinados: enquanto na primeira metade do livro você passa vergonha pelo livro ao mesmo tempo que o chama de babaca a cada duas ou três páginas; na segunda você começa a ficar com os olhos lacrimejantes por que sente, quase na pele, o sofrimento que é você tomar tantas porradas e tantas lições de humildade seguidamente.

Acho que disse a mesma coisa com Rockstar, mas Indomável deu uma boa conclusão ao universo D-Bag, e especialmente ao Griffin (que sempre me passou a impressão de ser o tipo de personagem que você não consegue realmente odiar, embora também não o ame de todo).

Eu fiquei muito, muito feliz mesmo com a leitura de Indomável. <3

18 de jan. de 2018

A Gruta de Calipso - Celso Gomes


Em mil novecentos e trinta e nove, o navio da marinha mercante alemã Windhuk partiu para a Africa do Sul levando centenas de passageiros que queriam fugir da guerra que se aproximava.

A guerra, já tão próxima, foi declarada quando o navio estava em seu caminho de volta.

Temendo ser atacado, o Capitão do navio tomou o rumo do sul e aportou em Santos, onde ele e sua tripulação foram aprisionados em campos de concentração em Pindamonhangaba e em Guaratinguetá, onde ficariam até o final na guerra, em mil novecentos e quarenta e cinco.

Exceto por quatro passageiros, os únicos quatro judeus a bordo, que sairam no navio em um scaler na calada da noite e atravessaram a remos a distância que separavam o Windhuk da costa brasileira.

A Gruta de Calisto parte dessa curiosidade histórica para ficcionar a história de um dos fugitivos, o oficial médico de origem polonesa Jardel Grynzpan em Arraial do Cabo.

Do clima agitado de Hamburgo, Jardel vê-se preso em um lugar movido ao sabor das ondas do mar e ao sol, e assim a narrativa segue, lenta e ruminosa, acompanhando o enredar-se lento do médico judeu à atmosfera que o acolheu e aos reflexos da Segunda Guerra Mundial àquele lugarejo quase esquecido pelos deuses.

A leitura foi lenta, um tanto tediosa e melancólica em alguns momentos, mas imagino que, considerando a realidade em que Jardel se viu preso, seria difícil ser de outra forma. A narração de Celso Gomes incorporou muito bem o ambiente em que Jardel foi inserido (isso por si só é um mérito e tanto).

É preciso deixar claro aqui que, apesar de já ter lido um ou outro livro com temas parecidos, eu não sou muito chegada a esse tipo de literatura, especialmente considerando o conhecimento literário do personagem (que discutia, além de política, literatura com quem a conhecesse - o que foi coisa de três ou quatro personagens ao longo da narrativa).

16 de jan. de 2018

A Queda - Albert Camus


Inicialmente escrito como um conto para a coletânea O Exílio e o Reino, A Queda tomou tal proporção que foi lançado, separadamente, como romance, em 1956.

Em um bar de Amsterdã, em um bar chamado Mexico-City, um estranho se aproxima de outro e lhe oferece ajuda para chamar o dono do bar para que lhes servissem uma bebida.

É assim que começa o londo monólogo (literalmente longo, pois perdurá por todo o livro) de nosso narrador. Auto-intitulado "juiz-penitente", Jean-Baptiste Clarence desfia ao seu interlocutor anonimo (e a nós) que aceita e assume suas responsabilidades pelos erros da humanidade, ao mesmo tempo em que se recusa a fazê-lo sozinho e deseja que cada um de nós faça o mesmo.

Nós, é claro, já que, além de falar com seu interlocutor, cuja voz jamais ouvimos, ele fala a seus leitores.

Mais uma vez, estamos falando de um narrador que fala ininterruptamente, mas, diferente do que acontece nos Trópicos de Hery Miller, me senti impelida a continuar a leitura mesmo sem entender muito bem para onde a história me levaria.

Todo esse diálogo, feito mais para converter mais um ao seu modo de viver do que para provar alguma teoria, não conseguiu superar (ou mesmo igualar) a impressão deixada por A Peste, talvez por este apresentar uma história menos subjetiva.

A verdade é que não sou muito fã de narradores que falam, falam, falam e parecem não falar muita coisa (embora admita que há pontos interessantes em A Queda).

12 de jan. de 2018

A Mulher na Cabine 10 - Ruth Ware


Laura "Lo" Blacklock é jornalista de uma revista de turismo de 32 anos que mora em um quarto/cozinha/sala no subsolo de um prédio Londres. Na primeira cena deste livro, ela acorda assustada com o gato e, ao colocá-lo para fora de seu quarto percebe que tem um estranho em sua casa, todo encapuzado, com máscara no rosto, luvas de látex nas mãos segurando uma bolsa cara que ela tinha se dado o luxo de comprar.

Quando a chefe sai de atestado por conta da gravidez, ela recebe a oportunidade de embarcar na viagem inaugural de um cruzeiro de luxo chamado Aurora Boreal. Para Lo, tal viagem significa ter a chance de fazer contatos e provar que merece a tal promoção que lhe é prometida há tanto tempo, além de é claro, se recuperar do choque de ter sua casa invadida.

Os dois dias que separaram a invasão do embarque, não foram exatamente dias bons: além do pânico de se sentir vulnerável em sua própria casa, ela ataca o namorado recém chegado da Ucrânia durante um pesadelo e os dois ainda brigam quando uma discussão aparentemente inocente desbanca para um possível término.

Na primeira noite a em alto mar, ao acordar no meio da madrugada com um grito assustadoramente próximo, Lo é atraída para a varanda de sua cabine, chegando a tempo de ver o que lhe parece ser um pacote do tamanho de um corpo sendo jogado ao mar.

Ela age imediatamente, chamando por socorro e relatando o que viu e ouviu. Só que não há ninguém registrado na cabine 10, nenhum passageiro está faltando, nenhuma das pessoas a bordo se parece com a pessoa que ela viu ocupando a cabine ao lado e, pra completar, não há muita coisa que corrobore seu relato, ou lhe dá crédito para que acreditem nela.

Ninguém além dela acredita que há um assassino a bordo do Aurora Boreal.

O livro é bem escrito, muito bem narrado e rápido de se ler, mas é estranho pensar em A Mulher na Cabine 10 como um thriller. Comparado a outros livros do estilo (e aí incluo Jo Nesbo, e até mesmo Fogueira), A mulher na cabine 10 é, no máximo, um suspense bem desenvolvido.

10 de jan. de 2018

Trópico de Capricórnio - Henry Miller


Mais uma vez, fui aos trópicos com Henry Miller. Dessa vez fomos ao sul do Equador, mas não se engane, ainda nos localizamos no Hemisfério Norte do mundo.

Em Trópico de Capricórnio (lançado em 1939, cinco anos após o lançamento de Trópico de Câncer), Miller nos fala sobre seu passado em solo americano, e não me limito a Nova York pois, em várias passagens que li ele falava de suas experiências em outros estados.

Mas, se no Trópico de Câncer tínhamos, mesmo que mal e porcamente, algum senso de cronologia, dessa vez ficamos completamente á deriva, soltos em diarreias verbais que alongam um parágrafo em duas ou três páginas (isso se tivermos alguma sorte).

Tá, eu entendo que, quando se fala sobre um assunto, vai-se com ele até o fim até encerrá-lo. O problema é quando ele engata e um para o outro e volta para o primeiro.

Sério, dois dias seguidos (três, temo eu) de dor de cabeça por não conseguir encarar Henry Miller em seu estado mais bruto.

A parte "boa" é que as putas ficaram mais raras, em compensação o cara não consegue ver uma boceta que quer enfiar o pau nela, e, não contente em contar seus próprios casos, também conta os casos dos amigos também. 

O que nos faz voltar à ladainha: "mil novecentos em trinta e nove", "mil novecentos e trinta e nove"... e se você acha que o mundo hoje é podre, leia os trópicos de Henry Miller (o de Capricórnio principalmente) e me fale se já não avançamos bastante desde então.

Não gosto de abandonar livros, especialmente quando se trata de livros de parceria, mas, sinceramente, não vejo razão para ir além das cento e sessenta e cinco páginas que já li.

8 de jan. de 2018

Travessia - Leticia Wierchowski



Havia sentimentos ambíguos em relação a este livro: A Casa das Sete Mulheres e Um Farol no Pampa foram histórias lentas e tristes, em que a guerra separava amores e enclausurava tantos vivos quanto mortos, talvez por isso, em muitos momentos dessas leituras eu me pegava melancólica.

Resolvi encarar a leitura de Travessia por razões que, em resumo, se relacionam ao TOC que não me deixa ficar com trilogias (séries em geral) inacabadas.

Travessia, o livro que motivou a reedição dos livros anteriores, é um livro dedicado à história de amor vivida por Anita e Giuseppe Garibaldi.

Tânger (cidade do norte de Marrocos), fevereiro de mil oitocentos e cinquenta, o italiano Giuseppe Garibaldi está no exílio, longe da Itália, que o expulsou, mais uma vez, e colocou sua cabeça a prêmio; afastado de seus filhos, que ficaram com sua mãe em Nizza; e afastado de Anita, abandonada em uma às margens do mar Adriático poucas horas após sua morte. Agora com quarenta e quatro anos, a dores do coração e da alma se misturam às do corpo, ele já não é o homem vigosoro que comandou a travessia dos barcos pelos pampas gaúchos durante a Revolução Farroupilha.

As lembranças o afogam, e, justamente para desafogar-se de suas lembranças e dores, ele se senta na mesa em seu quarto de pensão e joga as palavras em folhas e mais folhas de papel.

(Olha que coisa: depois de separados por terra, por mar e pelo tempo, Garibaldi e Manoela finalmente se unem em uma atividade comum...)

E assim, voltamos voltamos ao pampa, nos primeiros dias de julho de mil oitocentos e trinta e nove, quarto ano da Revolução Farroupilha, Giuseppe terminara o romance mal começado entre ele e Manuela para dedicar-se à construção dos barcos que fariam sua primeira viagem por terra em direção ao mar, para que os Farroupilhas pudessem conquistar um porto para a República Juliana.

É de um desses barcos, que ele, em uma tarde de ócio, vê Ana Maria de Jesus, a sua Anita, a beira da praia, próxima à casa de seu tio, onde morava enquanto seu marido lutava na guerra ao lado dos imperialistas.

Ao escolhe-la, Giuseppe deu a Anita voz na história do mundo e em sua história, e, como a voz que é, Anita também se faz presente na narração, contando-nos sobre as noites e as lutas ao lado de seu José, sobre as angustias e os ciúmes que tanto a perseguiram durante sua vida ao lado do herói de tantos povos, até mesmo sobre sua morte, anos depois, na Itália.

Anita e Giuseppe Garibaldi foram humanos amados pelos deuses, e até mesmo a maior delas toma para si a narração de vez em quando.

Travessia manteve a ambiguidade de seus antecessores: ele é melancólico, e de alegrias passageiras, mas ele difere dos outros em outro aspecto: mesmo nos momentos em que a espera de Anita sobrepôs-se à sua própria personalidade (momentos em que ela ficou retida em casa e seu marido foi para a guerra), tem-se a sensação do movimento contínuo, seja pelas pelejas em que Garibaldi se envolvia, ou pelo lento crescer de seu ventre e de seus filhos.

A espera sufocante de A Casa das Sete Mulheres (de Manuela mais exatamente, que, por ser narradora, vicia-nos com sua espera eterna e infrutífera) é transformada em uma espera que gera resultados em múltiplas frentes, com Giuseppe libertando pessoas, cidades e países e Anita gestando e lutando suas próprias pelejas.

Travessia foi uma redenção de Leticia Wierchowski. Sua obra jamais foi ruim (isso jamais!), mas, de uma história de esperas e perdas, essa história de amor e de lutas se transformou em uma preciosidade única da qual não conseguirei me desvencilhar tão cedo. <3